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Foto do escritorVictor Troiani

A resposta está na sua ficha!



Sobre um pedestal clássico, em mármore de veios cinzentos, impõe-se a figura irretocável de um guerreiro há muito sepultado. Aqui, diferente dos restos mortais, já desintegrados, revela-se na glória máxima o vulto heróico de seu ápice.


O homem não era um escultor, muito menos constituído de matéria mineral, mas o vislumbre da magna obra nos traz à mente sua mítica lembrança. Em nossa memória não vive ninguém além da própria cognição, não há imagens guardadas, mas a instantânea e imprecisa reconstituição, uma história recontada, embelezada e sombreada por emoção e raciocínio.


As lágrimas e sorrisos, a inspiração e louvor, as lições e mandamentos, todos residem na representação do herói ancestral. E o que nela o recorda não é a possibilidade, a massa prima, o potencial, o que torna possível que vivamos tantas histórias e poderosas emoções é a técnica aplicada ao bloco de mármore. Os limites impostos à matéria-prima, extremamente precisos e específicos talhos, são estes que trazem do bloco de pedra a forma daquele homem, descartam o excedente da infinita possibilidade, percebido pelo grande artista. Naquela pedra morava o homem, naquele homem morava a lenda, ambos existindo pela realização do ofício, trazidos à vida, e além dela, por escolhas, quando a opção se atualiza e a liberdade potencial é descartada.


A montagem da ficha de personagem é um ato lúdico, é seu próprio jogo, e nela reside a mediação entre o que você imagina que possa acontecer e o que será de fato, no alegre dia de jogo. Quem cria, entende, a vivência fantástica, cheia de desventuras, inseguranças e certezas que se desenrola na nossa alma quando, animados, nos preparamos para trazer à vida um personagem, por mais despretensiosa que seja a forma de criação, a ficha de um sistema.


Só começamos a compreender a forma de toda essa possibilidade quando rolamos os dados, distribuímos os pontos e atribuímos limites e capacidades ao caos e a vontade irrestrita. Assim como não somos o que podemos, mas o que fazemos com a natureza nos dada, também o é um personagem. Com sua ficha à nossa frente temos a primeira sessão, sozinhos com a folha preenchida, só nós e nossa criatura, nos encontramos pela primeira vez, mesmo que em sonho já tivéssemos nos intuído.


Agora, na sessão em si, estamos juntos ao grupo. Nossa lâmina de papel é colocada à prova, na primeira conversa, quando ainda incipientes nos apresentamos aos demais, na primeira interação com o mundo fantástico, na primeira parcela de sangue subtraída a duros golpes de borracha contra o rastro de grafite. As respostas estão todas lá, as perguntas golpeando como picareta a rocha já um tanto modelada e, ao fim de algumas sessões, de altos e baixos, ofensivas e evasões, conversas e discussões, vejo que não somos mais os mesmos. Meu personagem e eu, quase irreconhecíveis daquela primeira foto, do momento original. O que ali imaginávamos não passava de ilusão…


A ficha, rota e amarelada, enclausurada no plástico ressecado, esquecida no canto do armário. Aquele herói não existe mais, o que tinha de orgânico desintegrou-se ao ser desafiado pelo tempo, mas existe seu monumento.


Existem os poemas e as odes, os amuletos e a música, existem as estátuas e existe a ficha.


A nossa ficha... Não é exatamente ele, nem é exatamente minha, mas é suficiente para a lembrança, para a inspiradora memória, um eterno convite à aventura.


A ficha... Antes só perguntas, hoje só respostas.

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