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Continuando o pluralismo lúdico: sobre GURPS e tolerância


Uma caixa de RPG ilustrada com ícones medievais, espaciais e de combate contemporâneo
GURPS Basic Set 1986. Fonte: Roleplay Rescue

Um dos primeiros artigos publicados neste blog se referia ao pluralismo lúdico, uma forma tolerante de enxergar o simples fato de que pessoas diferentes se divertem de modo diferente, e que nenhum sistema é absolutamente superior a outro, ou que existe uma maneira matematicamente correta de se divertir.


Infelizmente, o dogmatismo sobre tal forma de divertimento continua a crescer, como atestamos nos grupos de WhatsApp e Telegram, criando fissuras e conflitos desnecessários na comunidade de jogadores. Vamos deixar aqui nossa sugestão clara: não perpetue essa intolerância irracional. Não só essa postura impede as pessoas a descobrirem novas formas de se divertir, como também impõe um custo psicológico àqueles que simplesmente preferem sair do “grande clube”, sob a forma do estigma social.  Alguns exemplos: nem todos gostam da ultra liberalidade do “combat-fu”. Nem todos gostam de dedicar horas para comprar equipamentos de expedição antes de entrar em um hexcrawl. Por outro lado, nem todos gostam de montar combos einsteinianos ou se debruçar sobre regras detalhadas para a simulação tática de um combate. Há pessoas que preferem regras robustas para manter a experiência de mesa mais estável e justa, sobretudo quando não há raporte ou conhecimento íntimo entre mestre e jogadores. Creio que todos testemunhamos esta querela estranha entre os “arquitetos e engenheiros” dos RPGs quando um efetua uma risada ácida sobre o modo de jogar do outro. São narrativas do tipo: “olha só...aquele cara não sabe que não precisa dessas regras para se divertir, é só seguir a cartilha do Finchcontra “você viu como os mestres do OSR são arbitrários e autoritários? E os jogadores? Nem parecem estar interpretando personagens, estão brincando de escoteiros e ignorando que os personagens não são eles mesmos!” (isso para não dizer o desrespeito verbal horrendo que decidi omitir dos dois lados). Peçam aos colegas que parem com essa briga sem sentido. Basta.


Com isso em mente, decidi escrever sobre um sistema injustamente criticado na comunidade apenas para ilustrar o ponto. E você deve ter adivinhado o nome do sistema: GURPS. Mas como assim? Falar de GURPS em um blog da Arcana, que é justamente compatível com o D&D das antigas? Por isso mesmo. Nada ilustraria melhor nossa posição de pluralidade lúdica do que defender um sistema absolutamente diferente do nosso, com o qual também nos divertimos.


O famoso nome-arroto significa “Generic Universal RolePlaying System” ou “Sistema Genérico Universal de Interpretação de Papéis”, e está ativo no campo desde 1986 com alterações mínimas de edição para edição. Para se ter noção da estabilidade do sistema, a mais recente edição (4ª) está há 20 anos em funcionamento, com suplementos ainda lançados a cada tanto. Este sistema possibilita ao mestre montar campanhas em qualquer cenário, do Império Romano a Senhor dos Anéis, do Neolítico a uma Space Opera. Famosos jogadores leais deste sistema são George R. R. Martin e Walter Jon Williams. Mas vamos deixar isso de lado. Não significa que algo antigo seja necessariamente bom, mas será que devemos desprezar esse mérito sem qualquer esforço de nossa parte? Não.


Ouso dizer que a maior parte dos mais ferrenhos críticos de GURPS não leram o manual, ou nunca jogaram o sistema propriamente. Não preciso dizer que nenhum sistema é perfeito, e sempre há jogadores que foram assíduos, enjoaram e agora detestam o sistema, mas a questão aqui é sobre críticas indevidas. Isso é mais verdade hoje do que foi nos anos 90, quando o sistema era extremamente popular no Brasil. Inclusive, você encontrará as primeiras edições em português, da Devir, em muitos sebos por aí. Em específico, as pessoas que o criticam de modo mais concreto dizem que é muito complicado, com foco desnecessário no realismo (alguns atribuem isso ao editor Sean Punch, o tal “Dr. Kromm”, por ser um físico de partículas), e que seu tomo denso afugenta novos jogadores. Outras teses, que detalharei depois, atacam GURPS por ângulos distintos. Pois bem, vamos destruir essas concepções.


Tese 1: “GURPS é um sistema muito complicado”


A introdução de quase todas as edições desmente isso. GURPS é o Lego dos RPGs, você decide quais regras utilizar, e aquelas regras mais complexas (como as de escavação e veículos) só entram em cena quando a mesa quer ou precisa determinar algum resultado com muita precisão. Conheço alguns que se divertiriam passando a noite calculando tais preciosismos e rindo sobre os resultados depois. Não é meu modo, mas respeito. Todavia, como criador de sistemas, adoro modularidade e possibilidades de criação cuja consistência já foi testada. Voltemos ao que importa. Existem quatro graus de detalhamento no GURPS:


a) Ultra Lite;

b) Lite (ou mini GURPS);

c) GURPS básico;

d) GURPS avançado.


O GURPS Ultra Lite é tão simples que poderia até ser rotulado sob a rubrica do movimento “FKR” (Free Kriegspiel Revolution, o movimento mais liberal em regras de todos). É sob esse movimento que publiquei o Loremaster RPG, inclusive. Já o Lite, com suas meras 36 páginas, detalha melhor o jogo e já toma a forma de um sistema robusto. O GURPS básico possui mais opções na criação de personagens, regras para magias e mais regras para situações táticas inusitadas. Por fim, o avançado utiliza centenas de suplementos para aprimorar o senso de realismo na jogatina.


Ler a introdução de GURPS já desobriga o jogador a utilizar a gama completa de regras, e diz ao mestre que, não compreendendo ou esquecendo alguma regra, basta modificá-la conforme quiser (mesmo que não seja realista, mesmo que seja incorreta no momento, se não deixou amargor nos jogadores, está tudo bem, aperfeiçoa-se com o tempo). As tantas páginas deste Lego se referem mais a perícias, como “Espadas Curtas”, vantagens e desvantagens de personagens, com pequenos parágrafos com regras sobre “possuir Infravisão” ou “ser alcoólatra”, propriedades que nem todo jogador precisará se preocupar. Se sua campanha é medieval, não haverá necessidade de ler as regras sobre Sci-fi.


Ao jogar algumas sessões, o jogador se surpreenderá com o fato de que tudo que precisa fazer é rolar 3d6 quando uma situação de risco se apresentar, e medir o resultado contra seu nível de perícia (além dos modificadores de dificuldade dados pelo mestre). Nada muito fora do que se vê por aí.


O mestre, é claro, possuirá o trabalho extra de montar o Lego, selecionar as regras que se adaptam ao seu cenário. Normalmente, esse trabalho é prazeroso e pode ser reaproveitado. Mas, se seu foco é jogar apenas um cenário durante a vida toda, talvez seja melhor usar um sistema específico. A grande vantagem de GURPS é de não precisar aprender sistemas distintos para cenários distintos, então é um jogo para quem gosta de jogar um western em um final de semana, e voltar para a fantasia medieval em outro.

GURPS é um sistema complicado para quem acha que é necessário decorar todas as opções de regras e suplementos. Vimos que isso não é verdade.


Tese 2: “Os personagens de GURPS são infalíveis, porque é possível ter habilidades próximas a 18, que em 3d6 não pode ser superado”


Em primeiro lugar, existem modificadores de situação e dificuldade. Se seu arqueiro possui 18 na perícia de atirar, certamente será banal atirar em um alvo estático parado a uma distância próxima. Mas isso instiga o jogador a ousar mais: atirar no olho do inimigo enquanto se move, e assim por diante. Porém, rolagens de 17 e 18 são sempre falhas críticas (o sistema é de se rolar abaixo do nível de perícia), e o mestre pode limitar o nível de perícias para definir o grau de verossimilhança de sua campanha. Ademais, os personagens em GURPS são criados de modo que suas especialidades não sejam falíveis demais (afinal, que adianta jogar com um caçador que quase nunca consegue caçar?). O mestre pode adaptar os personagens para que sejam meros inúteis, mas vai do gosto: tem gente que prefere alho e óleo, outros gostam de um carbonara.


A curva do 3d6 é mais “comportada”, é esperado muito sucesso de quem está acima da média, como atestamos na realidade. A aleatoriedade pode gerar situações bizarras, fazendo um mestre de Kung-fu errar um golpe básico contra um aprendiz. Mas tudo tem sua vantagem: um sistema d20, no qual o dado é caótico e gera resultados equiprováveis com uma falha de 5% em todos os casos, pode dar uma sensação maior de risco e apimentar a aventura. Repito: não há modo certo, é preferência. Lhes garanto que GURPS oferece amplas situações de risco, mesmo sendo um sistema 3d6.


Tese 3: “A criação de personagem em GURPS é chata e demorada”


Pois esta é a crítica que talvez possua mais lastro fático. Porém, devemos lembrar o seguinte:


a) nem todos gostam de criar personagens rápidos, e preferem detalhá-los para enriquecer sua interpretação;

b) a rapidez da criação depende do costume e experiência, conheço pessoas que criam fichas de GURPS em menos de 15 minutos;

c) há pessoas que se divertem criando fichas e narrativas antecedentes de seus personagens;

d) quem critica fichas demoradas, em minha experiência, é mais focado na exploração de calabouços e ermos, onde a letalidade é muito alta e refazer uma ficha demorada significa um custo de tempo e energia muito elevado. Não é o caso com o jogador de GURPS, e o sistema, que não deixa de ser letal, é um pouco mais leniente com a morte;

e) sempre é possível deixar fichas prontas para suprir a sede de sangue do mestre, se for o caso.


Aqui vemos que os críticos não possuem seus pressupostos claros e dificilmente os explicitam, efetuando deduções radicais com base em premissas cuja verdade não é compartilhada pelos jogadores “antagonistas”. Então vamos para a refutação.


O significado de “chato” e a atribuição negativa a “demorada” parte de desejos particulares e subjetivos, mas que são colocados como objetivos na hora da arguição. É preciso ter consciência disso para que se chegue a uma tolerância do diferente.


Tese 4: “O turno de combate de GURPS é tão rápido que não incentiva jogadas épicas”


Outra crítica razoável que vem daqueles que odeiam os jogos de porrada pura, os famosos “hack and slash”, mas resulta de uma leitura superficial do manual e a possível testemunha de um modo de jogo, ao qual jogadores novos de qualquer sistema estão sujeitos, uma espécie de círculo vicioso que se manifesta da seguinte maneira:


1.      Entra-se em combate;

2.      A iniciativa é determinada;

3.      Jogador declara “eu ataco” ou “eu me movo e ataco”;

4.      Se acerta, rola dano para aniquilar seus inimigos;

5.      Passa-se para o próximo jogador ou ao mestre, e o ciclo se repete de modo entediante até o final do combate.


O turno de combate de GURPS possui uma única ação de cada personagem envolvido, embora existam ações complexas que permitem movimentos com ataques. Trata-se de um único segundo, se lermos apenas as primeiras linhas explicativas. Mas a comunidade de GURPS prontamente explicará que se trata de um tempo abstrato, e, em verdade, estamos falando do “segundo mais relevante e derradeiro de ação”. O mestre mais experiente sabe que é possível alongar o tempo abstrato para manobras mais criativas, ou cortar o combate para cenas emocionantes de perseguição.


Enfim, só porque um manual de RPG não explique em letras garrafais a possibilidade de um “combat-fu” (essa criatividade livre em combate advinda da cartilha do Matt Finch), não significa que seus jogadores não possam empregá-lo. Os primeiros manuais de D&D certamente não o faziam, e foi apenas com uma cartilha muito recente que esta ideia se espalhou. Tampouco significa que as regras para manobras táticas complexas sejam “botões” para se apertar freneticamente, como em uma luta nas antigas máquinas de fliperama do Mortal Kombat ou Street Fighter. Trata-se, sobretudo, de agilizar a decisão e inspirar movimentos.


Portanto, a falácia aqui é supor que, porque alguns jogadores de um sistema são viciados em meramente atacar e se mover sem qualquer criatividade, então todos os jogadores de um dado sistema são assim. Generalização indevida. A maior culpa não é do sistema em si e seu possível número excessivo de regras. Lembro-me quando estava ingressando no mercado de trabalho e havia aquela preocupação com o “renome da faculdade”, e alguém dizia “quem faz a faculdade é o aluno” (o que resultou ser verdade de minha parte). Será que um sistema com muitas regras deixa o ambiente mais propício para esse comportamento? Talvez com mestres iniciantes, preocupados em seguir tudo à risca. Mas, no caso específico de GURPS, a recomendação é muito clara desde os parágrafos iniciais: as regras estão aqui para ajudar e deixar o julgamento do mestre menos parcial e mais justo, mas não são a lei suprema. Importante mesmo é se divertir.


Concluindo...


Gostar de D&D ou da Arcana Primária não te impede de gostar de GURPS e outros sistemas, e o mesmo se aplica ao revés. Conhecer outros sistemas não só ajuda a inspirar novas mecânicas divertidas para sua mesa, mas a entender, indutivamente, o que compraz a essência dos jogos de interpretação de papel, do porquê tanta gente continua a jogar esse modo de jogo e porque tantos sistemas são criados por aí. Enriquecendo seu repertório, mesmo que, ao final de contas, retorne ao sistema favorito de todo dia, chegará mais revigorado - quiçá inspirado – e mais consciente de seus pressupostos de diversão. Voltando ao cerne da questão, a mensagem que quero passar é a de paz e tolerância, repetindo dolorosamente a mensagem que escrevi no artigo original mencionado aqui no começo. 


Se gosta de um sistema e pretende jogá-lo com fidelidade fanática, pois bem, que o faça e seja feliz, mas não envenene o poço do vizinho. Diga-lhe, respeitosamente, que algumas regras ou mecânicas do sistema proposto não são desejáveis para você, ou que você prefere outra coisa. Simples.


Por outro lado, ao jogador que sofre desse veneno dogmático, da próxima vez que rirem da sua cara por preferir um sistema diferente, elucide-os: eles não têm teoremas provados contra sua preferência, eles não têm autoridade suprema sobre o modo de se divertir, e, mais importante, você não é obrigado a engolir as risadas sardônicas deste tipo de jogador. É melhor não jogar com eles mesmo.


Que possamos viver em uma comunidade mais integrada, aberta e unida, com mais mesas disponíveis e menos rixas espúrias.




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