Créditos da ilustração: Une foire en Champagne au XIIIe siècle (A fair in Champagne in the 13th century), engraving in Album historique, publié sous la direction de M. Ernest Lavisse (1898), Paris, Armand Colin & Cie
CONTEXTO DA SÉRIE
Quem nunca jogou um citycrawl, jogo no qual se desbrava uma cidade fervilhante e perigosa no lugar de ermos, está perdendo muita diversão. Porém, devo enumerar alguns problemas e desafios que me afligiram ao longo de minha mestragem do conceito, na esperança de que ajude pessoas de similar sentimento.
Em primeiro lugar, apesar de existirem magníficos módulos de exploração urbana, como é o caso da série Lankhmar para DCC, às vezes queremos criar nossas próprias cidades, independentes de mundos franqueados. Pode ser que seus jogadores já conheçam Lankhmar e Forgotten Realms de cabo a rabo, ou que estejam cansados de caçar cultos secretos no submundo de Altdorf e Marienburg. Criar mundos e cidades de próprio punho, sobre os quais os jogadores nada sabem, pode renovar a gana de exploração e remover o senso de segurança dos sabichões do grupo.
Em segundo lugar, ao criar uma cidade do zero, percebi que meramente gerá-la com tabelas aleatórias, por mais divertido que seja, pode revelar relações inconsistentes ou tão bizarras que podem remover a imersão do jogo. É possível sortear populações colossais com um punhado de fazendas na região para abastecê-las, enormes palácios de pedra e limo cercados por paliçadas de madeira velha ou ferreiros que comercializam armaduras de placas raras em vilarejos vikings do século IX. É claro que estou exagerando aqui, e não quero com isso dizer que devem-se abandonar as tabelas aleatórias, mas que, antes de sua rolagem, sigam-se certos princípios lógicos de conexão entre os elementos sorteados. Esta foi uma necessidade minha, pois creio que a verossimilhança histórica ajuda na imersão e realça o conteúdo fantástico, é aquela pitada de sal no caramelo. Sei, todavia, que a fantasia é tolerante ao bizarro e inexplicável, e se isso é o que você deseja, vá fundo!
Por fim, trazer à mesa uma cidade viva e carregada de inter-relações é um elemento crucial para motivar os jogadores a interagirem com suas múltiplas dimensões, e não meramente procurar missões no quadro de avisos e, com sorte, aniquilar algumas ratazanas em um porão imundo pelo pagamento de um punhado de pratas.
A história medieval é ampla, com aproximadamente mil anos de amplitude. Tecnologias mudam, indumentárias mudam, construções mudam. Ser verossímil está longe de ser monótono. O maior bônus, em minha opinião, que se ganha ao minerar inspirações de um estudo histórico é o de abarcar redes profundas e consistentes de problemas, personagens, festividades, conteúdo estético etc, sem falar no aprendizado pessoal.
Por essas questões, o objetivo desta série é explorar fontes históricas para inspirar mestres a criarem cidades imersivas e consistentes, um passo de cada vez, com pílulas resumidas. Por questão de ordem, cada referência bibliográfica será numerada entre colchetes e colocada ao final do artigo.
Preparem vossos corcéis ou caravanas mercantes, e adentremos os portões antes do anoitecer.
EPISÓDIO 1: FORMAÇÃO E GOVERNO DA CIDADE MEDIEVAL
FORMAÇÃO
Como se forma uma cidade? Responder a esta pergunta é importante no estabelecimento de alicerces narrativos sólidos para o desbravamento de cidades.
Populações começam pequenas e esparsas. Então, seja pela abundância material local, proteção ou por funções específicas executadas por algum regente nas proximidades, passam a florescer e desenvolver maior complexidade [1].
Para começar, pense na geografia pura. Rios ou lagos, campos férteis, florestas abundantes. Deve haver algo essencial para subsistência em certa abundância para sustentar uma cidade por um período razoável.
Uma cidade medieval raramente conseguia viver apenas da agricultura da vizinhança. Pense nas relações que uma cidade deve possuir com seus arredores, dia após dia, para perdurar. Não há cidade perfeita, que tudo faz e tudo recebe. Existem fraquezas econômicas a serem exploradas por inimigos, e mercadores de todos os tipos tentando chamar atenção de forasteiros recém-chegados. Não é à toa que algumas feiras comerciais ficaram famosas no mundo medieval inteiro, como é o caso da feira de Champagne [2]. Os campos que abastecem o cotidiano da cidade com comida não ficam a mais de uma hora de distância, então sempre vemos o entorno da cidade coalhado de campos férteis [3].
Já mencionei a necessidade de proteção. Muitas cidades, na idade do bronze e do ferro, começaram como fortes em colinas, cercados por paliçadas de madeira, que serviam como refúgio ao povo em momentos de necessidade: daí nascem os castelos urbanos [4]. As moradias começam a surgir ao seu redor por um adensamento de invasões na região ou por praticidade de encontrar clientela para sobras agrícolas, moradias são estabelecidas ao redor do forte. Tolkien nos dá bons exemplos de fortalezas que se tornaram habitáveis, como Minas Tirith e Minas Ithil (que veio a se tornar Minas Morgul com a invasão dos Nazgûl). Para casos reais, vejam as cidades inglesas de Canterbury (que inspirou Chaucer a escrever o Canterbury Tales), York e Norwich.
Em tempos mais avançados, a cidade pode ser originada simplesmente por repousar em um estreito ou costa estratégica, onde se pode cobrar pedágio de navegantes estrangeiros com facilidade, além de acessar mercadorias do outro lado do mar. Outras funções importantes podem gerar cidades ao seu redor. Templos e monastérios precisam de serviços diversos para sua manutenção. Por exemplo, no renomado livro de Umberto Eco, “O nome da rosa”, o noviço Adso percebe relações ilícitas entre os monges e os camponeses que vivem nos arredores, além de serviçais que trabalham na ferraria e açougue do mosteiro que voltam para sua aldeia antes do anoitecer. Todos vivem ali para sustentar os monges, estão entrelaçados por uma construção primordial. Lembre-se: cidades não se fazem no vácuo, e é isso que dará à exploração urbana sua riqueza e surpresa.
Temos também as famosas “cidades plantadas”, um conceito pouco explorado na literatura de RPG. Nobres ambiciosos perceberam a riqueza que se gera em uma cidade, em comparação a campos agrícolas isolados, e desenvolveram um método para atrair cidadãos a áreas designadas. O método era simples: conceder “licenças” oficiais de exploração sob a promessa de certas condições e privilégios [5]. Parte da riqueza gerada, é claro, iria ao arguto nobre. Nem sempre o projeto era bem-sucedido. Ao lorde fracassado restava assistir o desvanecimento de seus prospectos de pedágios e impostos.
Em contraponto com as cidades plantadas temos as orgânicas. Podem estar no mesmo lugar desde tempos imemoriais e utilizadas para diversas funções até a data corrente da aventura planejada. Nesse caso, é sempre bom enfatizar: se uma cidade perdurou por tanto tempo, deve haver uma razão concreta. Um bom caso para se estudar é o da cidade de Lincoln, na Inglaterra, erguida sobre ruínas romanas e desenvolvida com constante prosperidade [6].
Acho que já dá para se ter uma ideia, mas falar da formação de uma cidade pede que pincelemos também aqueles responsáveis por sua gestão, porque grande parte da dinâmica social é afetada por eles, por bem ou por mal, por atividade ou passividade.
GOVERNO
Quem comanda a cidade? É um xerife (shire-reeve) corrupto? Famílias de mercadores? Guildas de ofício? Ou o velho e seguro clichê do senhor feudal, que de seu castelo vê a cidade espraiada em todas as direções? O poder de uma cidade sempre será notado por aventureiros recém-chegados, seja pelo comportamento da guarda, pela configuração dos bairros ou pelos boatos que emergem das tavernas.
Em geral, cidades medievais contavam com ampla liberdade administrativa, desde que se entregasse ao nobre garantidor da licença (já vimos isso acima) ou proprietário original das terras (no caso de cidades orgânicas) o que lhe era devido [7]. O prefeito ou conselho era eleito pelos líderes das guildas ou nomeado diretamente pelos poderes em voga, como é o caso de vinte e sete famílias em Veneza, que mantiveram sua influência no conselho por algumas gerações [8].
Em casos de conflito entre cidadãos, como até hoje os temos com nossos vizinhos por suas obras mal-feitas ou por suas árvores rebeldes que invadem nossos quintais, havia oficiais para julgar o caso. É possível viajar no tempo e ler, em primeira mão, alguns registros de tais manifestações, no chamado Assize of Nuisance (traduzido aproximadamente como “auto de aborrecimentos”), da Londres dos séculos XIV e XV [9].
Mas o conflito não para por aí. Barões, duques e até reis brigavam entre si pela jurisdição de cidades, provocando, por vezes, conflitos de larga escala [10]. Como um exemplo, temos a conturbada vida do mercenário (por alguns dito paladino) El Cid, que se envolveu em muitas disputas territoriais com a nobreza espanhola, sendo exilado por conta de uma delas [11]. Isso, por si só, já rende muito pano pra manga.
Em caso de crimes, juízes (chamados de provosts ou alcaides) eram apontados para resolver o caso, condenando à forca os traidores, bruxas e heréticos, enquanto ladrões podiam sair com ardidas chibatadas nas costas [12].
É possível ser criativo com punições sem perder verossimilhança histórica. Decapitações e esquartejamentos não eram tão incomuns [13], e tiranos sádicos não são difíceis de encontrar nos livros de história.
Uma bela demonstração de cidade criada primorosamente com os parâmetros acima pode ser vista no módulo “Middenheim: City of Chaos” (disponível aqui). As ideias centrais podem ser transplantadas para qualquer sistema de preferência.
POPULAÇÃO
O tamanho da cidade é outra peça-chave do quebra cabeças, e será a última deste artigo. Com a determinação da magnitude populacional é possível arquitetar a variedade de bens e serviços disponíveis, além de determinar quão abarrotadas são as ruas, e até quão provável será encontrar um gatuno noturno por lá [14]. Reflita sobre isso quando um jogador lhe perguntar se pode comprar uma arma sofisticada, ou se há um local para vender pilhagens com itens raros (e mágicos).
Raras eram as cidades grandes. Estima-se que, na Europa, entre 12 e 15 cidades ultrapassaram a marca dos 50.000 habitantes, sem contar com o efeito da peste bubônica [15]. Norman Pounds nos ajuda com as seguintes categorias de cidade e sua frequência absoluta no norte europeu [16]:
Tamanho (# habitantes) Frequência encontrada (# cidades)
Gigante (acima de 50 mil habitantes) Não encontrada
Muito grande (entre 25 e 50 mil) 15
Grande (entre 10 e 25 mil) 45
Intermediária (entre 2 e 10 mil) 350
Pequena (abaixo de 2 mil) entre 3.000 e 4.000
Isso nos ajuda a modelar regiões e espaçar os grandes centros urbanos entre si, pois se é raro encontrar uma cidade “muito grande” em dado local, imagine encontrar duas delas separadas apenas por algumas horas de viagem! Na fantasia não seria impossível, mas a região deveria ser extremamente rica em recursos para justificar tamanha prosperidade.
Entrando agora no mérito qualitativo, a população era, em sua maioria, iletrada, então cartazes anunciando missões e contratações diversas deveriam contar com o serviço de escribas, ou simplesmente anunciados no centro da cidade [17]. Serviços assim aumentam em raridade em cidades pequenas e vilas, então procure não banalizar a presença de informações escritas.
Para finalizar, uma parte muito divertida, ao menos para mim, é a de gerar cidadãos específicos. Gosto de montar tabelas aleatórias com nomes regionais comuns e algumas características marcantes que ajudam a improvisar encenações. Ao nomear pessoas quaisquer, pense que antes do século XII e XIII não se usavam sobrenomes, e, mesmo depois desse período, eles eram locativos ou marcados por alguma característica física, como “Macedo do Algarve” ou “João, o baixo” [18]. É claro que a regra muda para a nobreza e clero (muitos membros do clero, por sinal, vinham da nobreza).
COLOCANDO AS PEÇAS EM MOVIMENTO
Com as informações acima reunidas, já podemos fazer uma ficha de cidade simples para dar ignição no maquinário da imaginação.
Sou uma pessoa preguiçosa. Nem sempre estou com vigor psíquico para gerar páginas e páginas de histórico para uma cidade inventada. Quero jogar logo e o tempo é curto, qual a solução? Fazer uma ficha resumida da cidade, e desenvolver conflitos e personagens a partir disso. Compartilharei um exemplo abaixo:
Velho Moledro
População: 1.500 habitantes.
Governo: Prelazia, liderada pelo abade Rodrigo do Couto, nascido no reino vizinho, mas criado na capital do corrente. Rodrigo subiu muito rápido na carreira eclesiástica, contando apenas com 27 anos. Muitos suspeitam dele, mas poucos têm coragem de fazê-lo abertamente. Rodrigo também impõe seus severos costumes religiosos na população, e pune desvios com fanatismo cego.
Proteção: Guarda fixa de 150 militares, entre arqueiros e lanceiros, providenciada pelo rei Alfonso, além de uma milícia de 200 pessoas, em caso de emergências.
Conflitos: O rei Sancho II, do reino vizinho, acredita que Velho Moledro lhe pertence, e que a igreja se apropriou do território de modo ilegítimo.
Fazendas e bens principais: Cevada, centeio, trigo, maçãs, couro, carne de porco e tijolos de argila.
Deficiências principais: Madeira e ferro.
Marcos relevantes: Monastério do Santo Retábulo, no centro da cidade, em uma colina elevada. A cidade fica em um vale fronteiriço com o reino de Sancho II.
Eventos recentes: Dois monges desapareceram e um foi encontrado assassinado em um beco sem saída, próximo ao portão sul. Boatos dizem que um destacamento de 50 guardas aliados ao abade está a caminho da cidade, patrocinados por um nobre que possui uma agenda oculta.
O resto é trabalho para a imaginação de cada um.
Bem, isso resume um assunto vasto, no qual encorajo o leitor a mergulhar, se assim o quiser, na bibliografia citada nas notas finais. Em postagens futuras, falarei sobre outros aspectos estruturais da cidade medieval.
Espero que tenha sido uma leitura proveitosa. Entusiastas, escrevam-nos com sugestões para próximos capítulos e comentem com adições, correções ou críticas!
Alexandre Katz
NOTAS
[1] POUNDS, Norman. The Medieval City. London: Greenwood Press, 2005, p.xxiv
[2] GIES, Joseph; GIES, Frances. Life in a Medieval City. New York: Harper Perennial, 2016
[3] POUNDS, Norman. The Medieval City. London: Greenwood Press, 2005, p. 1
[4] Idem, p. 2
[5] Idem, p. 12-15
[6] HILL, Francis. Medieval Lincoln. Cambridge: Cambridge University Press, 1965.
[7] GIES, Joseph; GIES, Frances. Life in a Medieval City. New York: Harper Perennial, 2016, p. 274
[8] Idem, p. 274-275
[9] Disponível em https://www.british-history.ac.uk/london-record-soc/vol10
[10] GIES, Joseph; GIES, Frances. Life in a Medieval City. New York: Harper Perennial, 2016, p. 278-279
[11] Ver em FLETCHER, Richard. Em Busca de El Cid. São Paulo: UNESP, 2002
[12] GIES, Joseph; GIES, Frances. Life in a Medieval City. New York: Harper Perennial, 2016, p. 280
[13] FIERRO, Maribel. Decapitation of Christians and Muslims in the Medieval Iberian Peninsula. Comparative Literature Studies Vol 45 No. 2. Penn State University Press, 2008
[14] Ver em POUNDS, Norman. The Medieval City. London: Greenwood Press, 2005, p. 38 et. seq.
[15] Idem, p. 77
[16] Idem, p. 79
[17] Idem, p. 72-73
[18] Idem, p. 59
PODCAST RECOMENDADO
Estudos Medievais - LEME/USP, disponível em: https://open.spotify.com/show/0nx4wbRZEbAOFzncuqzt87?si=70d007582ad44330
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