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O Teatro da Mente


(créditos da imagem: Warm_tail)


No momento em que vos falo, caminho a passos largos em direção à senioridade. Sou do ano 1987 de nosso senhor, completando 35 invernos no presente semestre. Na seara do jogo interpretativo comecei há muito tempo, talvez quando tinha 13 anos ou algo por ali, passei por diversas modalidades de jogatina, sistemas, mestres, regras e até mesmo pelo teatro. Neste rápido roer de ideias, analiso se o que jogamos já foi, é ou será RPG, no futuro. Como uma faminta capivara, me banho na correnteza da discórdia e os convido ao mergulho.


Interpretar é assumir o personagem e escolher, apontá-lo em uma direção e deixar que os mecanismos se mastiguem, cuspindo um resultado?


Aqui seríamos abrangentes, a maioria dos jogos poderia casar-se com o título de RPG, desde banco imobiliário, passando por livros em que escolhemos o destino dos personagens e, finalmente, quase todos os jogos eletrônicos do mercado. Se assumirmos que simplesmente isto não basta, então teríamos que excluir as aventuras onde apenas escolhemos entre A ou B e colhemos o que nos cabe. Se estão prontos, joguem agora os livros de Steve Jackson na fogueira e prossigamos rio abaixo.


Se no rolar dos dados, simulamos o acaso ou a amplitude de chance de sucesso, com personagens que avançam no tempo, melhorando e tornando-se mais capazes nestas rolagens, até mesmo acumulando riquezas, estamos em um RPG?


Certamente não é o bastante. Games como League of Legends, Counter Strike e jogos de tabuleiro diversos, como Brass, Wingspan e Jogo da Vida nos colocam como personagens ou administradores, que ao longo da partida melhoram e tornam-se mais eficientes. Muitas vezes nos obrigam a responder rapidamente ao inesperado, utilizando tanto a inteligência quanto a rapidez motora. Isto não os faz jogos de interpretação, então devemos descartar nossos computadores e triturar as coleções de boardgames, para então continuar a flutuação, rumo à verdade.


Temos nome, uma história pregressa, e uma especialização. Nos juntamos no Roll20 ou em outro tabuleiro digital, nos movemos por quadrados e descobrimos novos lugares, enfrentando perigos. Somos rpgistas?


Talvez, tanto quanto um jogador de Doom (ou Need for Speed se o seu argumento é de que deixei de lado as características únicas de personalização de cada personagem). Mas, neste tópico, chamo a atenção para algo diferente. A questão seria, ter personagens e apenas movê-los e atacar, cumprindo missões, ganhando pontos e acumulando riqueza, é estar em um jogo de interpretação de personagens? Ainda mais quando a solução de problemas, normalmente, parte do conhecimento do jogador, em um meta game, e não da real capacidade do personagem representado pela ficha?



É muito comum que tenhamos dificuldade em descrever o que é RPG para os trouxas. Aqueles que não conhecem o regozijo lúdico de se banhar em horas de faz de conta e sangue, onde encontramos morte e glória igualmente.


Quando eu cito que escrevo livros de RPG, rapidamente me respondem, em um sorriso, “Reorganização Postural é muito importante, tenho um amigo quiroprata!”, ou simplesmente fazem cara de paisagem e, enquanto explico se tratar de um jogo em que interpretamos guerreiros e feiticeiros, procuram logo em suas mentes novos assuntos para tratar. Mas, estas mesmas pessoas, quando dão uma chance ao nosso hobby, se encantam e se divertem. Na minha experiência, quem inicia-se no rpg, sempre sai de sua primeira sessão querendo mais e dizendo que aquilo é muito diferenciado.


Tendo jogado boardgames, jogos e lido romances, ainda assim as pessoas vêem o RPG como algo inédito e revigorante. O tempero exótico que os leva a essa impressão é o cerne da resposta que procuramos nesta elucubração.


Pontuo o que me parece ser a mágica:


A natureza cooperativa, unida às tomadas de decisão em conjunto, onde tentamos observar um mundo criado coletivamente pelos olhos de personagens que têm anseios, medos e moral descolados dos nossos, inicia o caldo desta sopa ímpar. Gostamos de fugir da rotina real e entrar num mundo onde nossas decisões têm muito mais peso no que nos cerca, e nossos erros são apenas virtuais. É revitalizante ser alguém que você quer e que criou do zero ao seu jeito. Isso tudo é convidativo e aconchegante, quando se torna um ritual conjunto.


O mestre como interface de interação com o mundo e juiz, junto às regras, unido à silenciosa constatação de que concordamos em uma lógica do que pode e não pode ser feito, ao longo do tempo cria-se uma familiaridade, uma noção de ritmo. Isso torna possível que saibamos instintivamente o que é uma catastrófica falha e o que é um sucesso milagroso, ao unir esta noção com a aleatoriedade natural dos dados e a incerteza do que será considerado pelo mestre, temos a ansiedade e a expectativa, a surpresa e o medo, emoções básicas que dominam nossa cabeça símia e nos enchem de dopamina, em um ambiente controlado.


Outra fonte gratificante é a capacidade de, aos poucos, entendermos as regras do jogo e, em um bom sistema, passamos a antecipar os resultados de uma tentativa, avaliar os riscos de uma jogada com mais precisão. Unimos isso a um mestre experiente que consegue informar a narrativa com as falhas, de forma tão interessante quanto o sucesso, sempre mantendo o espírito meritocrático que deve reger o jogo, e temos uma atividade desafiadora e interessante, que aguça nossa capacidade de resolver problemas e instiga a vontade de ver o que está por vir, os novos problemas a solucionar.


Sem fugir da pergunta inicial, nosso rio encontra um lago, onde as águas se misturam e aquiescem, calmamente espelhadas. A interpretação do RPG, nasce do desejo de se colocar na pele de um aventureiro, mas não para por ali. Interpretamos números, num ritual de jogar dados que nos informam, na mística linguagem matemática, o destino.


Interpretamos as faces e frases de nossos companheiros, buscando o consenso, quebrando cabeças com objetivos em comum, um brainstorm magnífico e mortal, passamos horas e horas conhecendo e interagindo com outros humanos que, como nós, desafiam a máquina da fantasia lúdica, criada por nós mesmos.


Interpretamos os enigmas, vontades e criações de um ser onisciente, onipotente e que acreditamos ser justo e capaz. O Mestre, é como um oráculo ou showman, que não sabemos se está a nosso favor ou se é um sádico algoz. Ele nos mata e presenteia, além de validar nossas vontades e desafiar nossos anseios inseguros.


Necessidades primárias e atividades sofisticadas ativam recompensas físicas, sociais e intelectuais. O jogo de interpretação é uma simulação coletiva e jorra estímulos potentes, que se tornam memórias perenes. Isso diferencia a experiência daquelas outras apresentadas, que emprestam apenas partes do hobby para desenvolver suas atividades, retirando muito da agência individual e da liberdade criativa que o RPG traz como essência.


O palco em que habita a interpretação, está em nossas cabeças e é enfeitado por nossa vontade. O RPG acontece no limiar entre a tecnologia, as miniaturas, fichas e tabuleiros. Quando o que é físico falha, e é insuficiente, interpretamos. Jogamos a essência do RPG, quando navegamos o teatro de nossas mentes.

Victor Troiani


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