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Criando Cidades Medievais - Ep 2: Casas e Ruas

Atualizado: 2 de jul. de 2022


Créditos da ilustração: Raw Pixel, domínio público


Seus jogadores estão explorando a cidade medieval que você tanto demorou para elaborar. Você se debruçou com afinco na tarefa, colocando um sistema de governo coerente e uma história evocativa. Agora, eles começam a navegar por suas vielas apertadas e labirínticas. Recebem missões. Talvez precisem roubar um ídolo demoníaco de um famoso mestre de guilda, ou qualquer outra coisa do tipo. Ótimo. Eles estão prestes a entrar na dita morada, mas… como é uma casa medieval?


Bem-vindos à mais um artigo da série “Criando cidades medievais”. Se você não conferiu o artigo anterior, poderá encontrá-lo aqui. Vamos direto ao ponto.


Quero começar com o local onde deixamos os aventureiros, isto é, na viela que os conduziu até a casa do mestre de guilda.


RUAS E VIELAS MEDIEVAIS


Se descrevi acima sobre vielas apertadas e labirínticas, é porque, em uma cidade européia medieval populada há algum tempo, a tendência era de manter as construções confinadas entre as muralhas, expandindo-se afora apenas depois de não haver modo algum de ali se construir [1]. Creio estar dispensado de dizer o efeito a longo prazo dessa lógica urbana.


É fascinante que possamos ver um exemplo quase intacto de uma viela medieval ainda hoje, na cidade de Troyes, na França, a tal da “Ruelle des chats”, ou Beco dos gatos. Essa viela possui apenas 7 pés de largura, aproximadamente 2 metros, o que, traduzido para mecânicas de jogo atuais, mal deixaria espaço para duas pessoas passarem ombro a ombro.



Beco dos gatos. Fonte: Extraída do site https://www.aube-champagne.com/en/poi/ruelle-des-chats-et-cour-du-mortier-d-or/


Ruas maiores existiam, mas não por isso a sensação opressora de construções apertadas e sobrepujantes deixava de permear o explorador caminhante [2]. As grandes ruas desaguavam normalmente nos portões principais ou em marcos importantes, como catedrais ou palácios. Isso é verificável em mapas de época, como o exemplo abaixo:





Ao nomear as ruas, pense em sua origem, ou mesmo em uma função urbana específica. Isso também ajuda a criar uma dinâmica especial para a cidade, dando pistas aos jogadores de sua economia e valores. Deixo alguns exemplos na tabela abaixo, extraindo alguns nomes das cidades de Troyes, Londres e Lincoln.




Pronto. Agora os personagens de jogador estão situados e já podem adentrar a casa.


A CASA MEDIEVAL URBANA


Cidades novas possuíam mais casas térreas, raramente com base de pedra, mas, após certo crescimento populacional passariam a verticalizar-se, pelo problema supracitado de se viver constrito entre muralhas, chegando a até quatro ou cinco andares [3]. Vale dizer que tais casas eram extremamente instáveis, pois suas estruturas eram feitas de madeira e estuque, que não tardava para apodrecer ou ruir [4]. Além da estrutura frágil, a madeira deixava casas medievais mais vulneráveis a incêndios, já que o fogo era amplamente usado para aquecimento e preparo de alimentos [5].


Com o tempo, construtores medievais passaram a buscar outros meios de reforçar casas, como pedra, tijolos de argila e limo, como exemplificam as cidades de Cluny, Lubeck e Gdansk (atual Danzig) [6].


Outro aspecto importante da casa medieval urbana, devido a constrição entre muros, era sua fachada estreita, compensada pela profundidade [7]. Como se o espaço não fosse apertado o suficiente (considerando ainda a largura das vielas), as casas eram também aproveitadas como comércios, usando suas janelas de madeira pivotante como toldo para bancadas e vitrines, ainda que cada loja não possuía tanta variedade de produtos quanto os jogos modernos de RPG nos levam a crer [8]. Porões eram usados para armazenar diversos itens, o que não deve causar muito assombro para o leitor.


Casas mais primitivas, semelhantes às de campo, não tinham separação para a cozinha, deixando uma lareira central para tal função [9]. Outras casas, especialmente no século XII, construíram a cozinha separadamente, em um anexo externo, nos fundos [10]. Mais comum, entretanto, era a lareira posicionada em alguma parede, com uma alta chaminé para dar vazão à fumaça [11]. A lareira servia também como foco de iluminação, junto com velas de cera e pequenas lanternas a óleo penduradas por correntes [12].


Mas e o banheiro? Bem, aqui teremos que dispensar nossa intuição moderna de privada e voltar aos primórdios: grande parte das casas possuía um buraco em seu interior para despejar as fétidas necessidades, são as chamadas fossas (cesspits) [13]. As fossas ficavam - pasmem - ao lado da cozinha, mas, pelo menos, eram cobertas por placas de madeira [14]. Deixar o conteúdo acumular era uma péssima ideia: há um caso relatado de um homem que, ao passar por uma tábua de madeira já apodrecida pela umidade, caiu em sua fossa e afogou-se na asquerosa lama movediça [15]. Bom, não queremos que isso ocorra com seus jogadores! Devemos chamar alguém para efetuar a “manutenção”. Mas quem faria esse trabalho sujo? Para quem joga DCC, a resposta é óbvia: o coletor de fossas, ou gongfarmer.


Pense no conforto de uma lareira, ao lado de sua ampla família, descansando em uma sala perfumada por urina e excremento humano, e um ocasional cheiro de bacon. Quanta alegria. Pense duas vezes antes de descrever qualquer aroma em uma cidade medieval.


Vejamos um plano comum deste tipo de casa:



Fonte: POUNDS, Norman. The Medieval City. London: Greenwood Press, 2005, p. 42

a) corte lateral; b) fachada; c) vista de cima, com a cozinha anexa ao lado de fora.


Até aqui, falamos de aspectos mais básicos e estruturais. Resta saber sobre decoração. De todos os tipos, o mais comum era o uso de tapeçarias para ornar paredes, e o mais raro era o posicionamento de tapetes de piso, como vemos por aí [16]. Alguns armários guardavam copos (às vezes de prata ou ouro) e utensílios de cerâmica, enquanto bens mais preciosos eram mantidos em grandes baús [17]. Toalhas de mesa também eram comuns, mas eram usadas como guardanapos comunais, não como proteção contra copos de cerveja suados [18]. Por falar em mesa, esqueçam dos pratos rasos e garfos: apenas as facas eram empregadas para facilitar o consumo da refeição, e pedaços grossos de pão eram usados como pratos rasos, ou cumbucas para saborear ensopados (sem colher) [19].

Mas, será que o rico comerciante e o pequeno sapateiro viviam no mesmo tipo de casa? Não. Alguns nobres e clérigos habitavam em palacetes urbanos, com suas janelas avistando, provavelmente de alguma distância, a sofrida amálgama de casas tortas e mal construídas [20]. Tais palacetes eram mais comuns em grandes cidades, como Paris, Londres, Roma e Florença, e, por vezes, também tomavam a forma de mansões [21].


Creio que isso resume bem o escopo.


Voltemos para a casa do vilão que retratei no início: um mestre de guilda que pretende invocar um demônio à partir de um ídolo. Como será a primeira impressão de sua morada?


Por se tratar de um mestre de guilda, podemos presumir que a casa não é das mais simples. Digamos que tenha quatro andares, sem contar com o porão.


Suas paredes são de estuque avermelhado, com vigas de uma madeira robusta, provavelmente trazidas com exclusividade de uma região vizinha. As janelas são retangulares e amplas, mas um pouco tortas, e estão todas fechadas para manter os habitantes aquecidos dos ventos gélidos que acompanham o anoitecer. A porta é de madeira, reforçada por filetes de ferro.


O destemido ladino do grupo, de apelido “Pé-de-ouro”, ao perceber que a luz irradia mais forte do segundo andar, decide verificar se o térreo está realmente vazio ao encostar a orelha na porta. Parece que sim. Os comparsas apressam-no para abrir a fechadura de uma vez, antes que a guarda volte a patrulhar esta altura da rua. Escuridão tétrica: as janelas estão todas tampadas, pois servem de toldo para apresentar os itens valiosos do comerciante-mór, e há muito já se passou da hora comercial. Pé-de-ouro acende uma lamparina coberta por um pano, emitindo uma luz discreta. A porta abre para uma sala estreita, repleta de armários e uma mesa encostada na parede, que, por sua vez, está adornada com tapeçarias caras de motes silvestres. O teto é baixo, com suas vigas de madeira ainda mais baixas. Cuidado com a cabeça!


Há uma porta semicerrada ao fundo, de onde se ouve um barulho abafado de vozes humanas. Pé-de-ouro decide espiar. A porta conduz a outro corredor que acaba em uma escada espiralada que conduz para o andar superior. As vozes ficam mais fortes. Parece haver uma querela, algo sobre um comerciante novo bisbilhoteiro, recém-chegado e não filiado à guilda. Parece que o papo vai longe. Se o ídolo estiver por lá, não será tarefa fácil. Por outro lado, há a opção de investigar o porão. O ladino retorna por onde veio, avisa os companheiros, e desce por uma escada exterior para repetir seu procedimento. Ou será que a cozinha guarda segredos dentro de seu fosso mal-cheiroso?


Agora é com vocês, leitores: que narrativas emergem dessa configuração doméstica? Será que demônios guardam o ídolo no porão? Será que alguém morrerá ao cair em um fosso movediço? Comentem e compartilhem conosco aqui ou em nossas redes sociais.


Espero que as informações acima sirvam de inspiração e aprimorem a imersão neste período histórico que tanto emulamos. Bom jogo!


Alexandre Katz


Inspirações adicionais:


Reconstrução de uma casa medieval: https://www.youtube.com/watch?v=GiWz7cIxJpo

Técnicas de construção de um palácio medieval: https://www.youtube.com/watch?v=ydoRAbpWfCU


Referências:


[1] POUNDS, Norman. The Medieval City. London: Greenwood Press, 2005, p.xxviii

[2] GIES, Joseph; GIES, Frances. Life in a Medieval City. New York: Harper Perennial, 2016, p. 53

[3] POUNDS, Norman. The Medieval City. London: Greenwood Press, 2005, p.xxviii e p. 40, ver também GIES, Joseph; GIES, Frances. Life in a Medieval City. New York: Harper Perennial, 2016, p. 59

[4] Idem, p. xxviii e p. 243

[5] Idem

[6] Idem, p. 40, ver também GIES, Joseph; GIES, Frances. Life in a Medieval City. New York: Harper Perennial, 2016, p. 62

[7] Idem, p. 41-42

[8] Idem, p. 43; p. 45-46

[9] Idem, p. 76

[10] Idem

[11] Idem

[12] GIES, Joseph; GIES, Frances. Life in a Medieval City. New York: Harper Perennial, 2016, p. 62

[13] POUNDS, Norman. The Medieval City. London: Greenwood Press, 2005, p. 47

[14] Idem, p. 66-77

[15] Idem, p. 66 - Aqui vale ler o “Assize of Nuisances'' mencionado no primeiro artigo da série.

[16] GIES, Joseph; GIES, Frances. Life in a Medieval City. New York: Harper Perennial, 2016, p. 62

[17] Idem, p. 65-66

[18] Idem, p. 64

[19] Idem p. 65

[20] POUNDS, Norman. The Medieval City. London: Greenwood Press, 2005, p. 43

[21] Idem


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