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O problema dos botões

Atualizado: 2 de jul. de 2022


Créditos da imagem: Shutterstock


Uma das preocupações centrais durante o desenvolvimento do Arcana Primária foi o desencorajamento de jogadores que meramente declaram o teste adequado para superar um problema. Por exemplo, ao invés de narrar ao mestre como o personagem pretende desarmar uma armadilha, o jogador simplesmente informa que quer rolar um teste de “desarmar armadilhas”. Isso remove a imersão do jogo e o transforma em um aparato puramente mecânico, burocrático. É comum nomear este fenômeno como “apertar botões”, como se faz em um jogo de videogame.


Até aqui, estamos bem. Não esperamos crise diplomática alguma por constatar este fato. Inclusive, na Arcana Primária, deixamos bem explícita a seguinte instrução:


“Uma boa descrição narrativa pode dispensar a rolagem de um teste, mas nenhuma rolagem de teste pode dispensar uma descrição narrativa.”


Em nossa opinião, isso, com a devida ênfase, deve bastar para mestres e jogadores, sejam eles novatos ou veteranos.


Ocorre que algumas pessoas extrapolam tal solução, e passam a culpar sistemas inteiros pelo comportamento de seus jogadores. Isto é, não basta advertir os jogadores, deve-se buscar outro sistema para evitar o comportamento indesejável. Trata-se de uma solução exagerada, que, como diz o ditado, “joga fora a água do banho junto com o bebê”.


A gênese do exagero começa, sobretudo, ao avaliar que, se o jogo oferece testes de habilidade ou perícia, então são dispensadas as explicações narrativas e a criatividade. É possível entender a força intuitiva da crítica quando vemos um jogador que opta em pedir um “teste de percepção” no lugar de narrar seus esforços em encontrar, digamos, uma passagem secreta. Será que o jogador continuaria a insistir nisso nas próximas ocasiões, caso o mestre sempre solicitasse uma narração detalhada da ação? Será que a maior parte desses sistemas realmente impedem o mestre de dar bônus ou dispensa no teste quando a narração é suficientemente detalhada? Não nos parece. O problema é comportamental, não canônico.


Agora pensemos nesta postura de “habilidade como mero botão”. O que a constitui?


  1. Um componente a priori, pronto para ser usado e transportado para a ficha de personagem;

  2. Condições que viabilizam o teste da habilidade;

  3. Condições de sucesso para o teste.

Esta enumeração não é exaustiva, mas parece suficiente para o propósito. Se estes parâmetros são explícitos, a habilidade pode ser usada com clareza mediante certos gatilhos provocados pela narração do mestre. Neste caso, se a máxima de “narrar antes de rolar” não for seguida, o jogador pode meramente proferir o nome da habilidade e suas condições de teste; aguardar as condições de sucesso do mestre; rolar o dado; e, por fim, seguir o jogo.


Agora podemos derivar consequências indesejáveis para muitos que reclamam da situação e culpam o sistema: quando um clérigo pede para usar seu “poder de fé”, normalmente para afugentar perniciosos mortos-vivos, ele não está apertando um botão? Quando o ladino solicita um teste de furtar bolsos, ele não está apertando um botão? E as numerosas magias do mago, o que dizer delas? Estes exemplos foram elencados porque são comuns tanto em sistemas dos anos 70 quanto nos sistemas atuais. Se o problema é “disponibilizar botões aos jogadores”, teríamos que remover qualquer recurso de classe e interação que rendesse uma margem mínima de dispensa interpretativa ou narrativa.


Ora, ainda que tal sistema possa ser elaborado sem problema algum, não parece que os críticos queiram abandonar a caracterização de clérigos, magos e ladinos, tornando-se um personagem que faz o que o jogador bem entender na hora que precisar agir. A caracterização de classes, ofícios, ou qualquer outro arquétipo é, em geral, benquista. Se não queremos nos livrar disso, temos que parar com a crítica reducionista e formular melhor o problema.


Assim, se o problema não está no sistema como um todo, quando é interessante deixar as habilidades mais granulares, e quando as dispensar por completo?


Embora não exista uma fórmula matemática para nos dar alento ao caso, nos parece que a máxima abaixo dá uma baliza suficiente:


O número de habilidades oferecida segue intensidade de simulação e grau de personalização dos protagonistas, conforme desejos e convenções entre mestre e jogadores.


Tomemos como exemplo o clássico e amplamente jogado sistema Call of Cthulhu (7e) da Chaosium. A ficha de personagem abarca mais de quarenta habilidades, desde reparos elétricos a conhecimentos em psicanálise. Já sistemas como a Arcana Primária oferecem apenas algumas habilidades de classe e a opção de testes de atributo genéricos.


Intensidade de simulação: define quão “realista” ou “verossímil” será a dinâmica do jogo, o que afeta a complexidade das traduções mecânicas dos fenômenos simulados. No caso de um obstáculo físico, por exemplo, não haveria uma única perícia de “Atletismo”, mas, talvez, uma subdivisão entre “Escalar”, “Pular”, “Nadar” etc. Afinal, não é verdade que, se uma pessoa sabe nadar bem, ela também sabe escalar montanhas com a mesma proficiência. Para combate, armas de uma mão e armas de duas mãos não compartilham o mesmo bônus, assim como uma pessoa que treina pugilismo não será necessariamente boa com alabardas.


Uma consequência disso é que a interação com o mundo fica mais detalhada, e a diversidade do grupo gera benefícios mais marcados, pois fica quase impossível um ou dois jogadores desempenharem bem todas as habilidades necessárias para mobilizar o enredo. Em casos de jogos de ficção científica, onde a tecnologia evoluiu muito além do senso comum, isso fica ainda mais marcado: um cientista especialista em clonagem humana não será necessariamente bom em hackear terminais de computador só porque sua inteligência é elevada. Um piloto de nave espacial não será bom em dirigir carros antigos só porque uma habilidade é mais avançada que a outra.


Personalização dos protagonistas: Para alguns jogadores, não são suficientes as clássicas divisões de classe entre guerreiros, ladinos, magos e clérigos. Alguns querem especificar que tipo de guerreiro são, e que tipo de habilidades lhes são mais desejáveis. Outros querem sair da interpretação do clérigo templário e formar um druida celta, que possui um rol muito distinto de magias e perícias. Cada classe, então, abriga um número de habilidades exclusivas e mutuamente excludentes, que inspiram modos de jogo mais esmiuçados.


Em suma, superado o obstáculo comportamental de dispensar narrativas para pedir testes “prontos”, a complexidade da ficha de personagem, das habilidades oferecidas para personalização e da navegação narrativa depende da disposição e desejo da mesa. Quiçá possamos culpar parte do sistema por não acautelar os jogadores a não usar habilidades como meros botões, mas isso não é razão suficiente para bani-lo ou julgá-lo inferior. É possível, inclusive, que hoje o mestre esteja disposto apenas a jogar sistemas com maior grau de simulação, mas em algumas semanas prefira algo mais leve e direto ao ponto.


Nada como uma boa comunicação para melhorar a dinâmica do jogo. Se concorda, discorda ou enxerga problemas não elencados, deixe um comentário e mantenha a filosofia do RPG viva.


Que seus horizontes de jogo sempre sejam amplos e bom divertimento!



Alexandre Katz

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