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O que é RPG?

 

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Jogar RPG é responder a um chamado, como na história abraâmica, sair de uma rotina onde quase tudo é familiar e garantido, para aventurar-se por fenômenos estranhos, perceber atores concebidos por outras mentes e habitar lugares ermos, longe no tempo e na natureza, no sentido essencial da palavra, um lugar de inconcebível ser, ao mesmo tempo dotado de impossível familiaridade. O que nos é prometido é a geração de novas experiências, a coautoria sobre o destino, e a batalha contra as forças do caos.

 

O jogo de interpretação é uma concepção conjunta, cerzida por participantes que surgem de um lugar relativamente comum, que sob a baila de regras idênticas conseguem ser diferentes o bastante para surpreender-nos. Isso é importante, porque o núcleo da alegria de jogar não parece residir em movimentos, coletivos ou na lógica seca dos parâmetros, mas na alma individual e nas capacidades de cada participante.

 

Estamos voluntariamente em uma atividade em que temos algo a perder, para desafiar um jogo cujas regras não apreendemos completamente. Nos dispomos a performar por uma miríade de motivos que não podem ser todos cristalinos conscientemente.

 

Perseguimos motivações, traçando estratégias, cooperando e enriquecendo, atingindo objetivos, muitas vezes para terceiros, aceitando a desculpa de que ouro e objetos mágicos nos importam.

 

Vejo homens, entre os galhos, vagando madrugada adentro, portam lanças, arcos e flechas. Falam baixo, ou quase nada, movem-se feito sombras em meio aos sons da natureza. Estão juntos, ao mesmo tempo encerrados em pensamentos intransmissíveis, têm o mesmo alvo, mas a narrativa que em suas mentes toma vida, de como chegarão à presa, a abaterão e de seu produto serão vitoriosos, esta é pessoal, feita sob medida. A caçada primordial, muito me lembra o RPG.

 

Aqui ocorre algo extraordinário, porque uma considerável parte do que informa a capacidade de gerarmos o teatro do jogo em nossas mentes vem de uma fonte específica. E bebem igualmente desta fonte todos os integrantes do grupo, todos menos um, a fonte de água fértil que chamamos de Mestre.

 

A figura central, o guia, é o Mestre, aquele que ativa as regras do jogo, não só as demonstrando, ensinando e conduzindo, mas as dando propósito. A lógica de um sistema é morta, insuficiente, pode ser excitante à hubris da forma como um quadro abstrato às vezes o é, mas jamais será uma sinfonia, um espetáculo de teatro ou um grande romance. A interface aqui é viva, e nos dá acesso ao lúdico de modo singular. Paradoxalmente o que nos dá acesso ao grosso da matéria também está jogando, e de nós depende para ter significado.

 

O RPG não é um videogame, e não o é de maneira espantosa; o RPG não é um jogo de tabuleiro, nem um caminho crivado na aleatoriedade, em números emergentes e pedaços de palavras. Quem se contenta com esses acessórios para caracterizar algo como a experiência original ainda não entendeu aquilo que ama. Quem pretende furtar ou pulverizar o papel (ou parte dele) do Mestre e fingir que ainda participamos da mesma cerimônia, é um herege, é aquele que escolheu e rearranjou as partes do todo, possuído por um espírito equivocado, soberbo, preguiçoso, antissocial, amargurado por algum aspecto chave do RPG. O RPG exige abertura, ímpeto e compromisso, quando fraquejamos em alguma destas, por vezes buscamos nos justificar mudando o jogo, e não nossa conduta. Precisamos de ajuda, de um guia, precisamos delegar o comando para um detentor da arte. Submeter-nos a um sacerdote.

 

Dissolver a nossa personalidade, guiados por um guru, para reemergirmos outros, metamorfoseados. Reunidos em volta dele, temos um centro que nos une, um âmago sem o qual perde-se o cerne. Como o centro de uma catedral é o altar, o epicentro da aventura fantástica é a cabeceira da mesa onde ergue-se, de trás do escudo, o xamã. É ele quem foi iluminado, voltando de sua jornada solitária e mortal, com algo a nos dizer, ou com a matéria viva que ele e nós precisamos explorar e dela nos alimentar, o corpo e o sangue de descobertas ainda indizíveis.

 

A iniciação xamânica é a passagem do infante ao sábio, o enfrentamento do caos, a dissolução da consciência nas entranhas do irreconhecível, e o renascimento, a reintegração à comunalidade, apreendido o conhecimento oculto, disseminá-lo doseadamente ao retornar à civilização. O conhecimento, ou a Verdade, por mais que tentem nos convencer do contrário, não se presta ao estático, não se conforma preferencialmente à lógica e à seca exposição dos fatos.


Nós, humanos, enxergamos nas coisas os fenômenos, da matéria apreendemos o espírito, e dos agentes só compreendemos histórias. O RPG é uma possibilidade de manipularmos essas histórias, simulando objetivos para que possamos representar motivações e experimentar arquétipos direcionados a fins comunitários, por meios particulares, em cooperação. É viver a lenda, ou o mito, apresentado e executado em uma liturgia específica, ancorada em uma lógica que confiamos ser compreensível (mesmo que não totalmente compreendida), e conduzida por um sacerdote, um mestre ordenado, que traversou o rito iniciático e, principalmente, diante de quem podemos confessar nossas vontades, confiando que a distância entre ele e o espírito da aventura é tão pequena que, por vezes, é imperceptível o véu que nos separa do mundo fantástico em que navegamos.

 

E em sua forma ideal o RPG flui como a boa música: crescendo, serpenteando, surpreendendo e sensibilizando. Libertando dopamina, quanto mais marcas são atingidas, quanto mais próximos estamos do alvo final, mais reforçada é a percepção de um caminho percorrido também na realidade. O progresso social, dos integrantes da mesa, junto ao progresso fantástico dos personagens, culmina, ao longo das interações, na crucial exploração; o autoconhecimento e a melhora do jogador enquanto pessoa. A mais valiosa progressão em nossa atividade, muitas vezes invisível, mas constante e inegável.

 

O RPG é uma atividade de refinamento da cognição, enriquecimento do imaginário (conceitos que podem muito bem significar a mesma coisa) e exercício de uma das, ao mesmo tempo, mais primitivas e sofisticadas formas de cooperação social que podemos participar. O chamado para a aventura é uma convocação a um ritual sacro, de forma ou outra performado desde os primórdios da existência, essencialmente conectado à atividade de ser humano.

 

A inacreditável captura de algo tão sublime na forma de uma atividade tão acessível e sedutora não é uma tarefa a ser minimizada. Maior ainda é a ousadia em dela participar, principalmente de forma crítica, buscando reeditá-la, sem a compreensão da sua essência e da sua forma, e sem contemplar dela o que traz em si de verdade, de história e de significados.

 

Mas esse será um tema para outra sessão, outro dragão a ser enfrentado, na próxima celebração da alma humana, em volta desta nossa fogueira.

 
 
 

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© 2022 por @artenovamkt

Ilustradores: Bernardo Hasselmann (@bfhasselmann), Carlos Castilho (@crawlstilho), Diego Gregorio (@becodoesboco),  Jade Jeronimo (@wolfspider_art)

Edições Arcanas - CNPJ: 45.399.611.0001/92
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